terça-feira, 16 de agosto de 2011

Os nomes dos sons da cidade


Lane Valiengo

   A cidade é a soma de suas lutas e culpas, escreveu o poeta. Poderíamos acrescentar que é também a soma de seus ambientes, seus sons e seus silêncios. Pois, de repente, podemos descobrir que é possível conhecer a cidade e a sua alma ouvindo os seus sons.
        A Santos que a maioria conhece é ainda mais ampla do que poderia supor a nossa inocente e surda consciência. A cidade é muito sonora. Só precisamos saber ouvir.
        Escute o som que vem do barracão comunitário da Vila Gilda, som forte e pulsante do Projeto Arte no Dique, que nos faz lembrar que as comunidades carentes precisam ser vistas e ouvidas, sempre, pois elas têm pressa em superar as suas dificuldades e abrandar as suas necessidades.
        O nome do som é resistência, inclusão, batalha e cultura.
        O som dos grandes e poderosos caminhões e carretas que chegam ao Porto, afundando as ruas e poluindo nosso caro oxigênio, mostrando que é justo o som da gritaria de todos os que pedem um grande estacionamento, para ordenar um pouco esse caos. O que se ouve é o som surdo das políticas de transporte...
        O nome do som é descaso, urgência, solução.
        Os sons dos sinos históricos e coloniais da Igreja do Valongo, monumento vivo a provar que a fé ainda resiste e persiste.
        O nome do som é memória, história, convicção.
        Os sons do apito dos grandes navios lembram que ainda falta muito para nos livrarmos da dependência externa mas estamos no bom caminho. E ao mesmo tempo falam diretamente ao espírito de aventura, ao contato com o oceano, com os povos distantes. São sons que falam da nossa história, pois a cidade existe por causa de seu Porto. E os sons das águas batendo nas pedras do cais não nos deixam esquecer nunca as nossas origens.
        O nome do som é comércio, é turismo, é cidadão do mundo, é história, é evolução econômica, é crescimento.
        Os sons que vêm ali da Vila Belmiro atestam que sempre seremos os melhores de todos os tempos, e que sempre mostraremos ao mundo os Robinhos, os Neymares, os Gansos.
         O nome do som é paixão, é gol, é arte, é espetáculo, é o jogo da vida.
        Os sons da fala alta, quase gritada dos corretores de café na Rua XV de Novembro, os sons da natureza no Iriri, Cabuçu, Monte Cabrão, Ilha Diana, Caruara, Vale do Jurubatuta, todos na Área Continental, aonde mora o futuro. Os cantos dos pássaros no Vale do Quilombo, o tilintar do bonde turístico, memória cotidiana revivida. Os sons metálicos dos cabos de aço puxando o funicular do Monte Serrat, os sons das promessas sendo pagas nas escadarias que não terminam nunca. Os sons que não se ouvem mais do relógio da torre da Western, os sons dos trens que ainda insistem em varar a noite, cruzando a cidade. Os sons do grito abafado de quem morre nas mãos de uma violência crescente e sem sentido. Os sons dos protestos das mães sem creches, dos sem teto, dos sem esperança, os sons das mazelas das favelas.
        Os sons alegres das noitadas no Centro Histórico e suas mil baladas e seus mil imóveis que costumam desabar. Os sons de quem acampa, prega e protesta na Praça Mauá, com seus megafones e altofalantes, suas demandas e suas ideologias, seus pedidos de mais participação, mais comida e mais democracia.
        Os sons dos lamentos de quem procura emprego decente, o som bravo de quem não consegue ver cumprida a promessa de se acabar com os cortiços. E os sons traiçoeiros da maré alta provocando eternos alagamentos na Zona Noroeste.
        Os alaridos das comemorações e reivindicações na Praça da Independência, os sons dos escapamentos de um trânsito que não para de crescer e de congestionar as nossas vidas. Os sons carnavalescos que renasceram longe das praias. Os sons que não se escutam mais que vinham do presídio e cortavam o ar da Avenida São Francisco como punhais envenenados.
        Os sons de quem caminha com pressa sobre os atracadouros das barcas para Vicente de Carvalho ou o som conformado de quem se espreme nos ônibus poucos que nos oferecem. Os sons ecoando na memória das greves portuárias, da recusa em embarcar as cargas nos navios espanhóis, os gritos de o petróleo é nosso e queremos nossa autonomia de volta. E os sons da poesia de Narciso de Andrade, quase sussurrada, como se fosse um segredo só nosso, muito bem guardado, a nos lembrar da importância do mar na vida de todos os santistas.
        Ecoam ainda os sons perdidos nos livros de histórias, que contam de batalhas e canhões, de piratas comandados pelo cruel Cavendish e dos sons do povo buscando os refúgios subterrâneos lendários, túneis, cavernas.
        Os sons imaginados da voz de José Bonifácio, o maior dos santistas, que ensinou como se constrói uma nação. Os sons que estão no ar, das vozes do Visconde de São Leopoldo, da cantiga dos escravos que resistiam no Quilombo do Jabaquara, da luta dos pioneiros abolicionistas, da voz de Bartolomeu de Gusmão, Martins Fontes e Vicente de Carvalho. E a voz rouca e rebelde de Pagu.
        Os sons do verão, as cigarras anunciando mais sol e calor do que podemos suportar, e os sons do vento noroeste, com cheiro de maresia e de chuva.
        São os sons de todos os santos, todas as lutas, todos os prazeres, todos os orgulhos, de todas as nossas faltas e culpas. Sons santistas, com certeza.
        Sons que se resumem no nome "vida".

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