segunda-feira, 15 de agosto de 2011

O nome do saneamento


Lane Valiengo
       
         Todos nós temos o oceano nas nossas vidas, como se aquele mar e aquelas praias fossem a extensão das ruas em que pisamos. O poeta Roldão Mendes Rosa um dia escreveu: “Nasci num porto do Atlântico/ Dia e noite as águas cantam/ Ouvimos o mar desde o berço/ No cais na praia no sono”. E o outro grande poeta, Narciso de Andrade, completa: “E no sono, tudo era sonho. Tudo era Santos”.
O oceano passa entre nós, talvez querendo participar mais dos nossos cotidianos, saber mais, ouvir mais. E assim ele vai. Crescendo e retraindo seus braços, através dos canais. Canais de drenagem, canais de vida, canais de salvação.
         Os canais de Santos não são somente obras de engenharia sanitária. Nem apenas as colunas do ordenamento urbano. Representam acima de qualquer coisa o início da nossa afirmação como cidade e como sociedade. São o marco da nossa cidadania e da nossa própria alma, a representação mais precisa daquilo que somos, da comunidade que aqui se formou.
         Nos dias atuais, as pessoas clamam por mais Saúde, saneamento, condições de vida, controle ambiental. Pois tudo é o ciclo histórico dando suas voltas: Santos, no quarto final do Século XIX, também precisava de tudo isso. E precisava por uma questão de sobrevivência não só das pessoas, dos trabalhadores. Mas para a sobrevivência da própria Cidade. Por isso, o nome do saneamento só poderia ser Saturnino de Brito, o homem que projetou e construiu os canais de Santos.
         Quando os trens de ferro aqui chegaram, em 1868, com a inauguração da primeira ferrovia, o comércio do café fez de Santos uma cidade que crescia a taxas impressionantes: entre 1886 e 1900, o índice foi de 223%. Em 1872 existiam 9.151 moradores. Em 1900 eram 50 mil e o censo municipal de 1913 apontava 88.967 habitantes.
         Mas o custo social deste crescimento era terrível. Santos era considerada uma das cidades mais insalubres do mundo, com taxas assustadoras de mortalidade. Entre 1889 e 1897 nasceram 810 crianças mas foram registrados 2.574 óbitos. Incluindo os estrangeiros, morreram de 1891 a 1895 mais de 5.700 pessoas.
         A causa: a febre amarela. Que chegou pelo Porto.
         A cada verão as tragédias repetiam-se. Em 1889 deu-se a grande epidemia. E ainda havia a varíola, a tuberculose, a malária e a peste. Na última década do século, morreram aqui mais de 22 mil pessoas.
         Trabalhar no cais era um bom negócio. Mas viver perto do cais não era. Não havia moradia suficiente. As casas abandonadas por quem fugia da febre e da peste viraram habitações coletivas. Pagava-se pouco mas as epidemias encontravam ambiente propício aonde as pessoas viviam amontoadas, em cubículos.
         E até hoje não conseguimos acabar com os cortiços...
         A alma do poeta sabe sentir de forma especial o que se passa com os mortais. E Roldão disse: “Ouve e aprende a cidade real./ Ela não é apenas a rua em que passas/ a caminho de casa, nem a casa em que moras/ Nem os telhados vistos do alto./ A cidade é o conhecimento de suas faltas e lutas...”.
         E a Cidade foi literalmente à luta. Sanear era preciso, era essencial. O País necessitava de um Porto sadio. E lá vieram os engenheiros e seus planos. E aqui criaram uma Cidade de verdade, para substituir o amontoado insalubre que imperava. O francês Voillot descreveu os horrores que presenciou. O frete de mercadorias encarecia por causa dos riscos. Hoje a doença é outra, é de logística. O americano Estevan Fuertes foi chamado para projetar o saneamento geral de Santos. O esgotamento da Cidade foi planejado por José Rebouças e reformulado por Saturnino de Brito.
          Foram construídos 80 quilômetros de rede e mais 17 quilômetros de canais de superfície, para as águas pluviais, drenando assim as áreas pantanosas. Ao mesmo tempo o cais era construído. Riachos foram canalizados ou aterrados próximo ao Centro. Combatia-se assim a proliferação do mosquito transmissor da febre amarela, talvez parente próximo do mensageiro da nossa atual dengue. Com carta branca, a Comissão Sanitária criada pelo Governo do Estado tornou-se uma espécie de poder paralelo. Ao longo da História, Santos certamente viveria outros momentos semelhantes.
         Mas vamos ser claros: o saneamento que nos salvou foi feito a partir de interesses econômicos, do comércio exterior. E não como alguma espécie de preocupação unicamente com a Saúde.
         Ao mesmo tempo, o saneamento e a promoção de condições dignas de Saúde e sobrevivência deram a Santos a sua maioridade, a sua afirmação como Cidade. Como escreveu o estudioso Wilson Roberto Gambeta, houve a desacumulação da pobreza, em contraponto à tentativa de disseminar a pobreza acumulada, representada pela dispersão da população pela periferia.
         Os espaços urbanos alargaram-se e passaram por nova distribuição. A campanha sanitária venceu. Talvez, hoje, precisaremos iniciar uma luta semelhante. A vantagem é que hoje, mais de cento e cinco anos depois, temos os canais. E a cidadania.
         Em tempo: segundo Candido Figueiredo, em "Novo Dicionário da Língua Portuguesa", Saturnino significa o mesmo que saturnal; relativo ao chumbo e seus compostos".
         Sim, foram tempos de chumbo e o engenheiro era de ferro.

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